‘’Em Macau, tirar um curso é uma coisa que é vista com uma grande seriedade. Não é uma fase da vida’’
Rui Simões é um dos portugueses que já lecionou fora do país. Em entrevista, o professor partilhou a sua experiência em Macau, as dificuldades e as diferenças entre o povo português e macaense. Apesar do choque de culturas evidente, considerou a sua experiência gratificante e que a mesma lhe permitiu mudar alguns aspetos da sua forma de dar aulas.
AULP – Que benefícios lhe trouxe esta experiência enquanto pessoa, professor e investigador?
RS – É difícil dissociar as coisas. A primeira é relacional. Tive sorte com os meus alunos e, independentemente dessa diversidade, as pessoas foram muito simpáticas. Construí boas relações ali. Voltei a Macau 15 anos depois e vários alunos vieram ter comigo para marcar um encontro. Há uma empatia grande entre nós. A segunda é de uma dimensão didática: foi um processo lento e pontualmente mais doloroso. Alguns dos alunos tinham dúvidas e não as enunciavam. Não era raro ter alunos, principalmente chineses, que julgavam que dizer ao professor que não entendiam era uma forma de dizer que este não tinha explicado bem.
AULP – Quais as principais dificuldades em lecionar num país que não o de origem?
RS – Macau é uma situação singular. Trata-se de um contexto onde uma das línguas oficiais é a língua portuguesa. Em Macau tive alunos metropolitanos (naturais de Portugal), alunos macaenses, chineses, cantonenses, guineenses, cabo-verdianos, angolanos, australianos e americanos. A diversidade foi muito grande e isso trazia variáveis na ordem de funcionamento de uma aula. Os problemas de comunicação não eram exclusivamente do professor, mas também entre eles.
AULP – O impacto cultural foi grande quando foi para Macau?
RS – É evidente que há um choque e esse choque em parte era muito desejado. Não era a primeira vez que eu tinha saído de Portugal: já tive uma bolsa para estar na Índia. Não foi uma saída desenhada com uma estratégia económica, apesar de muitas pessoas o terem feito. Eu tinha condições para o fazer e tinha um enorme desejo de viver na Ásia, em particular na China e Macau.
AULP – Quais são as maiores diferenças culturais entre Portugal e Macau?
RS – Há diferenças que são relacionadas com os mercados muito dinâmicos, a relação com o tempo, o aforro, as noções de privacidade… As pessoas não me convidavam para as suas casas, mesmo que tivéssemos uma enorme empatia. Nesses sete anos e meio devo ter sido convidado duas ou três vezes para ir a casa de amigos chineses.
AULP – O que difere de uma aula em Macau para uma aula em Portugal?
RS – Difere, por exemplo, no domínio da participação. Em Macau havia uma maior noção de que uma aula converge para um determinado tipo de finalidade. As pessoas estavam a trabalhar para esse fim, com maior ou menor interesse. Uma vez dois alunos vieram-me perguntar o que queria dizer a palavra “keké”. Estavam intrigadíssimos. Até que percebi que eram cinco palavras que estavam em causa: “o que é que é”. A partir daí comecei a falar mais devagar. Parecia que estava o tempo todo a fazer anúncios de cola para dentaduras (risos). Foi uma preocupação que eu ganhei, em especial com alguns alunos e turmas. É uma diferença que julgo ser mais histórica do que cultural.
AULP – A forma como dava as aulas modificou-se depois de passar por essa experiência?
RS – Eu penso que sim. Modificou-se em relação a algumas práticas que mais tarde vim a refletir. Para as pessoas dominarem um determinado algoritmo, precisam de um determinado número de exemplos. Percebi ainda que o facto de uma pessoa ter experiência, por exemplo, em dar cultura portuguesa a chineses, não o torna só por isso mais apto a dar cultura portuguesa a espanhóis ou a franceses.
AULP – Acha que em Macau se valoriza mais a educação do que em Portugal?
RS – Acho que sim. Encontramos isso, mas acho que a diversidade de alunos e das suas motivações faz com que haja exceções. Digamos que o empreendimento para fazer um curso é maior. Em Macau, tirar um curso é uma coisa que é vista com uma grande seriedade. Não é uma fase da vida. Não se é estudante, tem-se um curso para fazer. Estudar em Macau era caro e por isso a ideia de perder um ano era um drama. O esforço era marcado e as famílias tendiam a valorizar muito a escolarização. Ter uma nota baixa, para muitos daqueles alunos, era humilhante. Os alunos que estudavam em Pequim eram os melhores, dos melhores, dos melhores. Quando chegavam eram autênticas máquinas de trabalho. O português era-lhes uma língua estrangeira. Recordo, que uma vez recomendei um livro português a alunos que frequentavam um curso de verão. Dois dias depois tinham lido tudo, apesar de ser numa língua que lhes era difícil. Era necessário ter respeito por quem trabalhava assim.
AULP – Recorda Macau com nostalgia…
RS – Sim. Foram sete anos gratificantes, sobretudo a nível relacional. Estive há dois anos atrás em Macau e está completamente diferente. As diferenças não são só no património edificado. Há diferenças de população, novas gerações, novos interesses, novas preocupações. E esse dinamismo requere a humildade de aprender um contexto que não se recapitula obrigatoriamente na memória.
Percurso Profissional: Rui Simões é Professor Adjunto da Escola Superior de Comunicação Social, onde tem vindo a lecionar as disciplinas de Sociologia, Antropologia, Metodologias de Investigação e a opção de Comunicação Intercultural. Foi professor da Escola Superior de Educação de Setúbal (1986-1992), da Universidade de Macau e do Instituto Politécnico de Macau (1992-1999). Os principais temas de pesquisa são a Comunicação, a Educação, o Lúdico e os Processos de Construção da Memória, nomeadamente associados à presença portuguesa na Ásia. Foi investigador na Índia e é Mestre em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Problemática do choque cultural: Para lidar com o choque cultural, é necessário, através da observação que se decida a forma como abordar pessoas e situações. Depois há que tornar as coisas claras com o método de tentativa e erro. Por fim tem de se ser imparcial, paciente, esperar o inesperado e ter capacidade de adaptação. O choque cultural pode ser visualizado como uma curva em forma de U que exibe um otimismo inicial sobre a cultura de acolhimento, um mergulho subsequente de sentimentos sobre a cultura de acolhimento e uma recuperação gradual a um ponto de se ser capaz de funcionar eficazmente na nova cultura.
Fonte: Samovar, Larry A. & Porter, Richard E. (2010). Communication between cultures. Belmont: Wadsworth, pp. 398-399.